Pai full-time

Eu me tornei pai recentemente, há quase 4 meses. Era algo que eu queria e sonhava há tempos. A minha utopia que eu carregava há alguns anos era clara: ‘quando eu for pai, vou estar bem estabelecido na vida profissional e financeira, e vou tirar 1 ano inteiro sabático só para ficar com minha filha. Pai full-time’. Como toda boa utopia, ela escapou de mim assim que eu me aproximei. Mas isso fez com que caminhássemos, eu e a Labuta Labs, em direção a uma licença-paternidade de 1 mês. 


Perto da minha utopia, pode parecer pouco. Mas comparada à licença-paternidade garantida por lei hoje no Brasil, isso é muito. Enquanto a licença-maternidade garantida por lei tem duração de 120 dias (4 meses), podendo ser estendida para 180 dias (6 meses), a licença-paternidade no Brasil dura menos que o Carnaval: são míseros 5 dias. Sendo que não são 5 dias úteis, mas sim 5 dias corridos. Se o bebê nascer numa quinta-feira, azar da família: o fim de semana transforma os supostos 5 dias de licença em apenas 3 dias longe do trabalho. 

Isso pode parecer normal, porque há muito já foi normalizado. O ano é 2025, mas a divisão de papéis de gênero na sociedade ainda persiste a mesma há décadas, forte e enraizada: a mulher deve cuidar da casa e da família, o homem deve trabalhar. Mas essa equação não é tão simples assim. Cuidar de uma criança recém-nascida é um trabalho full-time, sim. E diferente da maioria dos trabalhos, não é algo que termina junto com o horário comercial. Não dá pra largar a caneta num dia e só pensar nisso no dia seguinte. Ele não acontece só nos dias ‘úteis’, não tem folga no fim de semana, férias ou feriado. E claro, isso tudo pode parecer muito óbvio, sobretudo para 2 tipos de pessoas: as que já têm filhos e as mulheres.

Se tornar pai e ter apenas 5 dias de licença é cruel.

Os impactos negativos - e os prejudicados por eles - são incontáveis. O primeiro é o bebê. Pra começo de conversa, embora a Constituição diga que ‘Ser assistido é direito das crianças e um dever de ambos os pais’, o Brasil é o país do abandono paterno: em 2023 foram 172,2 mil crianças registradas sem o nome do pai, um recorde na série histórica. Cerca de 11 milhões de mulheres criam os seus filhos sozinhas no Brasil. Além de violar os direitos da criança e do adolescente, esse abandono pode afetar a autoestima, a capacidade de estabelecer vínculos, a saúde mental e o desenvolvimento das crianças. 


O vínculo entre o pai e o bebê também impacta profundamente o pai que nasce. É comum ouvir que as mães são ‘programadas biologicamente’ para o amor incondicional e que o seu cérebro e hormônios se alteram com a chegada de um filho. Mas experimentos recentes mostram que os homens também experimentam alterações hormonais e cerebrais ao se tornarem pais. Mas com uma condição. O pai não nasce com o filho, mas pode se tornar. Isso só acontece com tempo dedicado pelo pai em ativamente cuidar do filho nos primeiros dias de vida. 

E claro, as mulheres são duramente prejudicadas por isso. A sobrecarga feminina, a ‘economia do cuidado’ e o trabalho ‘invisível’ das mulheres - leia-se invisibilizado, não reconhecido e não remunerado - vem sendo cada vez mais debatidas no país. Em 2023, chegaram a ser tema da Redação do ENEM. Só que não acaba aí. A desigualdade salarial entre homens e mulheres também é agravada a partir do nascimento de um bebê: estudos do Brasil e dos Estados Unidos indicam que as mulheres são ‘penalizadas’ profissional e financeiramente pela maternidade, enquanto muitas vezes os homens podem até ser beneficiados por isso. Se a diferença salarial entre homens e mulheres já é significativa, a diferença entre homens e mães fica ainda maior.

Vários países já contam com políticas mais progressistas do que o Brasil, como mostra essa reportagem com um mapa interativo. Os escandinavos costumam liderar a pauta mundo afora, e a Suécia é uma referência bastante famosa: foi pioneira ao ser um dos primeiros países a instituir a licença parental de 180 dias (6 meses) há mais de 50 anos. Esses dias podiam ser divididos entre pai e mãe, mas na prática a licença era majoritariamente tirada pelas mães, enquanto os pais usavam apenas 0,5% das suas licenças. 

De lá pra cá, a Suécia aumentou a licença total para 480 dias (16 meses, 1 ano e 4 meses!). Os dias podem ser divididos entre os pais e agora até parte deles transferidos para os avós. Mas existe agora um novo incentivo: os pais precisam tirar pelo menos 90 desses dias. Aos poucos, a medida vem impulsionando uma mudança e melhor redistribuição nos papéis de cuidados dos filhos, e hoje os homens usufruem cerca de 30% da licença parental remunerada. Não é uma utopia da igualdade de gênero, mas é uma prática que já muda a dinâmica das famílias, da sociedade rumo a mais equidade e que pode ser replicada. 

A Islândia, país referência em igualdade de gênero no mundo, foi a pioneira na distribuição igual da licença entre homens e mulheres. Em 2000, foi instituída por lei a licença de 3 meses para cada um, em que o pai ‘perderia’ a licença caso não a usasse, modelo que inspirou as políticas de outros países hoje em dia. Na Noruega, são pelo menos 15 semanas (mais de 3 meses) de licença que precisam ser utilizados pelo pai. Na Finlândia, são 160 dias (mais de 5 meses) de licença subsidiada para cada um. 


Pra não dizer que não falei das flores brasileiras, existem hoje projetos de lei no Brasil (PL 3773/2023 e o PL 6216/2023) que visam mudar essa história: apelidado de ‘PL do Pai Presente’, os projetos defendem justamente o aumento da participação do pai no cuidado dos filhos, ampliando a licença-paternidade para 30 dias. Como bem mostra a Coalizão Licença Paternidade, os benefícios são abundantes e abrangentes: uma maior licença-paternidade é melhor para as crianças, famílias, para os pais, para as mães e para a economia. 


Falo de políticas públicas por ser um problema complexo: são muitas variáveis, e o poder governamental pode ser um poderoso ponto de alavancagem. Mas como um bom desafio sistêmico, existem inúmeros ângulos de abordagem. Outro caminho possível é pelas empresas. A legislação e regulamentação trazem incentivos sistêmicos, mas cada empresa tem autonomia para fazer o seu design organizacional de forma intencional. Fomentar as causas que defende. Apoiar as demandas dos seus colaboradores. Trabalhar em direção a uma maior equidade. Criar suas próprias práticas, políticas e benefícios referentes à maternidade e paternidade. Isso está no alcance dos tomadores de decisão de cada organização. Licenças ampliadas e equivalentes, vale-creche, berçário, salas de amamentação… A Natura, por exemplo, conta com licença maternidade de 6 meses, licença paternidade de 40 dias e recentemente estendeu o acesso ao benefício de berçário para colaboradores pais. 

A verdade é que eu queria ter escrito um texto muito menor. Mas eu tenho refletido e aprendido muito sobre isso. O que significa ser pai. Pra mim. Ou o que eu quero que signifique. Que vai muito além do ‘paizão’ que ‘ajuda’ e que ‘também troca as fraldas’. 

E também queria ter finalizado esse texto antes - desculpa, time de Design. Mas tenho me virado como dá. Tentando ser o melhor pai que eu consigo e equilibrar todos os pratinhos. Em 3 meses de Sophia, já foram 2 viagens de trabalho. Inúmeras idas ao hospital. Pediatra. Vacinas. Noites mal dormidas. Nada de muito novo pra quem já tem filhos, mas tem sido uma jornada de descobertas pra mim. 

Quero ser o melhor pai que consigo. E descobri que não tem escapatória. O trabalho é full-time.


Referências:

Brasil registrou mais de 172,2 mil crianças sem nome do pai em 2023: https://www.conjur.com.br/2024-jan-02/brasil-registrou-mais-de-1722-mil-criancas-sem-nome-do-pai-em-2023/

No Brasil, 11 milhões de mulheres criam sozinhas os filhos: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-08/no-brasil-11-milhoes-de-mulheres-criam-sozinhas-os-filhos

Impacto da paternidade no desenvolvimento dos filhos: https://www.academia.edu/86239763/Novo_Papel_do_Pai

Tema de redação do Enem traz à luz organização patriarcal da sociedade: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2023-11/tema-da-redacao-do-enem-traz-luz-questao-estrutural-da-sociedade

Economia do cuidado: o trabalho invisível: https://open.spotify.com/episode/1mQ26Px6KwzFLCdUJaRFXB?si=946bf6fe43ec44f7

Netflix Explicando - Porque as mulheres ganham menos: https://www.netflix.com/watch/80243751?trackId=268410292

O impacto da maternidade na desigualdade salarial no mercado de trabalho formal: uma análise para o Brasil entre 2008 e 2018: https://periodicos.ufsc.br/index.php/economia/article/view/93370

The Fatherhood Bonus and The Motherhood Penalty: Parenthood and the Gender Gap in Pay - https://www.thirdway.org/report/the-fatherhood-bonus-and-the-motherhood-penalty-parenthood-and-the-gender-gap-in-pay

Licença parental pelo mundo: mapa interativo mostra detalhes da legislação sobre o tema: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/03/28/licenca-parental-pelo-mundo-mapa-interativo-mostra-detalhes-da-legislacao-sobre-o-tema.ghtml

Licença-paternidade no Brasil é ‘limitada’ e rever prazo é ‘mais urgente do que nunca’, diz diretor da OIT: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw4e7rx0wm1o

PL do Pai Presente: https://www.pldopaipresente.com.br/

Coalizão Licença Paternidade: https://www.coalizaolicencapaternidade.com.br/

Berçário ampliado para pais: https://exame.com/negocios/natura-estende-beneficio-de-bercario-para-os-pais-colaboradores/

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