Eu vou morrer trabalhando
Calma, veja bem. Eu não quero morrer porque trabalhei demais. “Morrer trabalhando” é diferente de “morrer de trabalhar”, por mais que essas duas frases ocupem o mesmo espaço. Falei sobre isso num texto¹ recentemente, que escrevi após uma das últimas visitas ao meu pai na UTI. Acho que a morte dele me fez (re)pensar em muitas coisas, inclusive o trabalho. E se alguém desta empresa reflete sobre o trabalho e isso gera mais do que 10 linhas no bloco de notas do celular, pode ter certeza que está nascendo mais uma edição da Ócios.
Meu pai falou sobre querer sair do leito, para “voltar a trabalhar, voltar a viver", nas palavras dele — como se esses dois fossem a mesma coisa.
Ele nunca chegou a sair do leito, nem do hospital. Faleceu poucos dias depois dessa conversa que tivemos. E, bom, eu e meu pai não tínhamos a melhor relação. Na verdade, mal tínhamos uma relação. Mais por escolhas que ele fez antes de eu decidir as minhas coisas pra mim mesmo. Esse tipo de relação é difícil, porque crescer sem pai, nos faz buscar as figuras paternas e masculinas para se agarrar durante o crescimento. Ao mesmo tempo que o pai, o genitor, vira uma antítese do que se é e deve ser. Mas, por mais que eu tenha essa dicotomia de uma maneira bem racional na minha cabeça, preciso reconhecer que a gente tinha irritadamente em comum: a supervalorização do trabalho.
Calma, veja bem, caro leitor. Eu não acho que o trabalho é minha maior virtude. A supervalorização não é uma romantização do sacrifício, eu jamais repetiria a mesma temática² nessa coluna — ainda mais porque quem escreveu sobre foi Gabriel Haag, meu ídolo. Supervalorização, numa forma bem simplista, é sobre aumentar o valor que o trabalho tem. Só que não é tão simples, se você colocar uma lente periférica sobre essa temática. De onde eu e meu pai viemos, das franjas da cidade, o trabalho é a única coisa que podemos nos agarrar. Nesse cenário, o trabalho é uma corda finíssima e escorregadia, mas muito forte, que nos pendura e nos faz sentir seguros num terrenos de incertezas.
Não quero fazer um grande texto, falando sobre trabalho e periferias³. Mas vale reiterar que esse recorte deve acontecer. Repito, deve. A base da força de trabalho do país reside nas margens⁴ e, ignorá-la, é afunilar o olhar para um cenário nada representativo. Ao mesmo tempo, não olhar intencionalmente para esse público, nos faz ignorar a relação importantíssima do ato de sonhar⁵⁶ que reside no trabalho.
Então quando eu falo que vou morrer trabalhando, é porque, no fim das contas, o trabalho está ocupando o mesmo lugar dos sonhos. De onde eu vim, eu vim sozinho, fiz parceiros de crime e de creme quando cruzei a ponte⁷. Mas na minha arma tem somente uma bala, e não vai dar para desperdiçar ela. Talvez algumas pessoas não entendam o que isso quer dizer, mas quem veio de onde eu vim, sabe exatamente o peso dessas palavras. O trabalho ocupa o mesmo lugar dos sonhos, porque é nos sonhos que a gente imagina a esperança sendo uma certeza de um cenário melhor.
Diferente do meu pai, não acho que trabalhar é o que me faz vivo. Eu vivo porque me distraio da morte. E trabalho porque sonho. Só que vou sonhar até morrer, por mim ou pelos meus, como quem não tem outra opção.
Referências
https://www.labutalabs.com/ociosdooficio/romantizacao-dos-sacrificios
D’ANDREA, Tiaraju Pablo. Do estigma ao orgulho: sujeitas e sujeitos periféricos como agentes políticos das transformações nas maneiras de classificar as periferias urbanas. In: RAMOS, Paulo César; SANTOS, Jaqueline Lima; BRAGA, Victoria Lustosa; HABERMANN, Willian (orgs.). Periferias no plural. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil, 2023. p. 231-242.
TEIXEIRA, Marilane (entrevistada). Trabalho no Brasil: a maioria dos trabalhadores está na periferia do sistema. IHU Unisinos, 30 abr. 2022. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/618077-trabalho-no-brasil-a-maioria-dos-trabalhadores-esta-na-periferia-do-sistema-entrevista-especial-com-marilane-teixeira.
FONTES, Leonardo de Oliveira. Between dreams and survival: the (dis)embeddedness of neoliberalism among entrepreneurial workers from São Paulo’s peripheries. International Journal of Urban and Regional Research, v. 47, n. 6, p. 907-925, 2023. DOI: https://doi.org/10.1111/1468-2427.13218
SALVADOR, Pedro. Por sonho ou necessidade, pessoas periféricas se viram para trabalhar na própria quebrada. Periferia em Movimento, 9 maio 2024. Disponível em: https://periferiaemmovimento.com.br/trampoetrampo0952024/.
RACIONAIS MC’s. Da ponte pra cá. In: RACIONAIS MC’s. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra, 2002. Disco 2, Faixa 10.