Romantização dos sacrifícios
Desde criança, cresci ouvindo que o trabalho dignifica. Meus pais, avós e familiares eram o exemplo vivo disso: jornadas de 12 a 15 horas por dia, como se o sacrifício fosse uma medalha silenciosa. O trabalho era visto como o centro da vida, ou seja, um valor em si. Mas, olhando hoje, me pergunto: dignifica quem? E a que custo?
A romantização do sacrifício no trabalho é a crença de que exaustão é sinônimo de dedicação, e de que suportar pressões absurdas é prova de caráter. Essa lógica atravessa gerações:
Baby Boomers e Geração X: valorizavam estabilidade e viam o sacrifício como virtude.
Millennials: começaram a buscar propósito, mas ainda carregam a culpa de descansar.
Geração Z: questiona abertamente por que precisamos adoecer para sermos “bons profissionais”.
Geração Alpha: já cresce em um mundo hiperconectado, e provavelmente não aceitará narrativas antigas de “trabalhar até cair” — mas corre o risco de trocar a exaustão pelo vício da hiperatenção.
Esse não é um detalhe menor. Segundo dados da ANMT (Associação Nacional de Medicina do Trabalho) e da International Stress Management Association (ISMA, 2024), o Brasil é hoje o segundo país do mundo com mais casos de burnout. Estamos adoecendo em massa, e ainda assim continuamos aplaudindo a exaustão como se fosse virtude.
Byung-Chul Han chama isso de Sociedade do Cansaço: a era em que já não precisamos de um chefe cobrando, porque aprendemos a nos autoexplorar. David Graeber nos lembrava que muitos empregos modernos são “bullshit jobs”, ou seja, funções sem propósito real, que ainda assim sugam energia vital. Richard Sennett mostrou como o trabalho flexível corroeu vínculos, enquanto Robert Merton alertava para as consequências não intencionais de boas intenções.
Um exemplo clássico é o Efeito Cobra. Autoridades britânicas na Índia pagavam recompensas por cobras mortas em Delhi. Pareceu funcionar, até que a população começou a criar cobras para vender depois. Quando o programa foi suspenso, milhares foram soltas, piorando o problema. No mundo corporativo acontece parecido: bônus trimestrais que estimulam fraudes (Escândalo Wells Fargo), metas irreais que viram burnout “premium”, rankings de “dedicação” baseados em quem fica até mais tarde. Soluções que parecem racionais, mas reforçam a exaustão.
E, para piorar, muitas empresas ainda pintam essa engrenagem com verniz positivo:
Wellness fake: yoga e frutas para compensar metas abusivas.
Segurança psicológica de prateleira: workshops que falam em “espaço seguro” sem tocar em estruturas de poder.
Otimismo tóxico: “vai dar tudo certo!” usado para abafar conflitos reais.
Adaptação compulsória: o discurso “adapte-se ou morra”, que legitima submissão a ambientes tóxicos.
A boa notícia é que esse cenário já não passa despercebido. No Brasil, a nova NR-1 incluiu diretrizes específicas sobre saúde mental e trouxe maior responsabilização das empresas. Não basta mais oferecer “palestra motivacional” e dizer que está cuidando: é dever da organização garantir condições reais de saúde e bem-estar, sob risco de sanções legais.
Romantizar o sacrifício é perigoso porque desumaniza. Transforma gente em recurso, e descanso em pecado. E o mais perverso é que acabamos acreditando que essa é a única forma de viver.
Mas não precisa ser assim. Descansar não é preguiça, é recuperar a vida roubada pelo trabalho. Pequenos atos de recusa como não responder mensagens fora de hora, dizer não a demandas inviáveis, ou simplesmente descansar sem culpa são formas de resistência.
“Bons dias para se trabalhar” não nascem prontos. Eles precisam ser co-criados. E talvez esse seja o maior ato de coragem: recusar o sacrifício como normalidade e imaginar futuros em que o trabalho seja apenas parte da vida, não a medida dela.
Referências:
Byung-Chul Han – Sociedade do Cansaço (autoexploração e lógica da performance).
David Graeber – Bullshit Jobs (crítica a trabalhos sem propósito real).
Richard Sennett – A Corrosão do Caráter (efeitos da flexibilidade e precarização do trabalho).
Robert K. Merton – conceito das consequências não intencionais de ações propositais (mostra como boas intenções geram efeitos perversos).
Barry Johnson – Polarity Management (polaridades em vez de problemas resolvíveis; usado na explicação sobre incentivos perversos).
Michel Foucault – reflexões sobre o poder como rede de relações (referência no trecho sobre incentivos e poder).
Edward Deci – Teoria da Autodeterminação (sobre motivação intrínseca vs. sistemas de recompensa).
Porta dos Fundos: Prioridades: https://www.youtube.com/watch?v=dg8x2bj5GD4&t=107s